Série II.020
Salvador
Portugal tem destas coisas. Após cinquenta e tal anos de eurofestivais da canção Portugal ganha, pela primeira vez, apresentando-se com uma música anti festival.
Contrariando a receita de música bimby que tem contagiado este festival nas últimas décadas, o nosso País aparece com uma música de alma portuguesa, cantada na nossa língua.
A música é uma obra prima? Talvez não. Mas é uma música boa, tem poesia e apetece voltar a ouvir.
Que eu me lembre, da música que normalmente ouço, nenhuma saiu do festival da eurovisão. Ainda assim, tenho assistido a muitos. E divirto-me. É sobretudo curioso ver o que cada país apresenta num festival. A maior parte é música enlatada, mas, de vez em quando, sai uma fora da caixa. O que nem sempre significa qualidade, é certo.
Mas Salvador saiu fora da caixa e com boa música.
Talvez isto possa ser inspirador para outros ‘festivais’ onde temos de nos apresentar:
- sair fora das receitas bimby que, sendo certinhas, sabem sempre ao mesmo;
- sermos nós próprios, porque as imitações não valem tanto como os originais;
- não perder de vista as nossas raízes.
Isto é um discurso que pode ser usado para as cidades, os lugares, as pessoas e a afirmação de Portugal no resto do mundo.
Tive pena de não ter assistido a dois eventos que acontecerem no Funchal: a XI Conferência Anual do Turismo sobre Marcas, organizada pela Ordem dos Economista e a “Smart Funchal- sobre Turismo Inteligente” acolhida pela Câmara Municipal.
No entanto, confesso, a minha curiosidade por ambos os eventos, era tão somente para atestar que, tanto num caso como noutro, estamos a falar de estratégias acessórias para o que realmente interessa discutir sobre a cidade ou a região, enquanto destinos turísticos ou qualidade de vida dos seus cidadãos.
Não digo que não tenham importância. Mas é preciso discutir muita coisa, antes de falar sobre as melhores formas de ‘vender’ o ‘destino’. Tenho mesmo algum receio que, a transformação de um lugar, de uma cidade ou de uma região, em função da constituição de uma Marca, como se tal fosse um produto comercial, não seja o princípio para os transformar num parque de diversões para turistas em que, pouco a pouco, vai ser expurgado dos seus habitantes naturais.
Relativamente às “smarts cities”, começo logo por um problema de tradução. “Smart”, tanto pode significar uma pessoa bem vestida, com boa aparência e na moda, como pode significar esperteza ou, na melhor das hipóteses, inteligência.
De facto, é desejável que tenhamos uma cidade inteligente.
Mas transpondo o significado da palavra inteligente para as cidades ou regiões, diria que é a forma como cada uma aproveita o seu conhecimento, a sua experiência, a sua história, para imaginar o futuro e planeá-lo, para lidar com realidades complexas e atuar de forma eficiente e rápida na resolução de problemas.
A inteligência pressupõe também a capacidade, mais ou menos abstrata, de uma compreensão do mundo e de uma realidade para além do seu próprio território, percebendo, obviamente, quais são as questões essenciais para um desenvolvimento sustentável. Ou seja, ‘advinhando’ o futuro de forma a conduzir a transformação do território para que ofereça as melhores condições de habitabilidade para os seus cidadãos e, em consequência disso, ser também um lugar atrativo para os que nos visitam.
Não basta por isso criar marcas ou fazer apologias de smart cities. Ao contrário de uma marca dum qualquer produto comercial, que pode durar uma estação ou meia dúzia de anos, uma cidade ou uma região devem ser sustentáveis por décadas ou centenas de anos e isso resulta não de acessórios, mas da criação de património.
Património cria-se com planeamento, regras e objetivos, com uma ideia de cidade ou do que queremos para o nosso território. Por outro lado, uma cidade inteligente não depende diretamente do uso de tecnologias e de recursos digitais disponíveis. Por outro, a inteligência de uma cidade depende mais da forma como utiliza os seus recursos, cuida do seu património material e imaterial e envolve os seus cidadãos na discussão do futuro, fazendo uma gestão clara, participada e transparente dos seus recursos.
No caso do Funchal, já foi dado o pontapé de partida com a criação do Gabinete da Cidade. Tarde, é certo, mas no bom caminho. Tanto quanto me foi dado a perceber, deverá ser uma plataforma criada para desenvolver o trabalho de identificação dos elementos que constituem o carácter da cidade e dos lugares, de forma a definir as estratégias de transformação da cidade. E isso é essencial para definir o quociente de inteligência da cidade. Ou seja, adquirir o conhecimento sob a realidade para, avaliando-a, podendo definir uma linha condutora, um rumo com regras e ações conscientes.
Por isso, atrevo-me a dizer, podemos retirar uma lição da vitória de Salvador e, sem problema, aplica-la à Madeira, ao Porto Santo, ao Funchal e outros concelhos e lugares.
Naquilo que fazemos ou projetamos, devemos fazê-lo com o que nos vai na alma, sem copiar receitas instantâneas que são desenvolvidas por criadores de operações de marketing para venda de produtos.
Antes, devemos primar pela qualidade, com consciência e sem vergonha de sermos diferentes dos outros porque isso, sendo o que nos distingue, é também aquilo que pode constituir um fator de atratividade.
E, por tudo isto, parabéns a este salvador, pela sua música e por nos lembrar que devemos ser autênticos, que a língua portuguesa é bonita e que sabe bem ouvir a palavra Portugal 18 vezes.
16 de Maio de 2017
publicado in JM . Jornal da Madeira