O que é preciso é gastar cimento

Série II.010

O que é preciso é gastar cimento

A tragédia que ocorreu na Madeira a 20 de fevereiro de 2010, trouxe à tona uma série de problemas de gestão do território.

É certo que, de catástrofes daquelas não estaremos livres, pois as condições meteorológicas que se verificaram não acontecem todos os anos, mas podem acontecer. Porém, a desmatação nas serras provocada por incêndios e outros acidentes, a movimentação de terras e o depósito de inertes em sítios inapropriados, a construção de casario junto às ribeiras e em zonas de risco de erosão, potenciaram o terrível acontecimento de memória recente.

Em solidariedade com a Região, o governo da República, na altura presidido por Sócrates, colocou à disposição da Região Autónoma da Madeira, a transferência extraordinária do orçamento do Estado em 200 M € a distribuir entre 2010 e 2013, o reforço do Fundo de Coesão em 265 M €, uma linha especial de financiamento junto do BEI de 250 M €, verbas do PIDAC reforçadas em 25 M €, etc, etc.

Era suposto com estas verbas, a RECONSTRUÇÃO de infraestruturas, habitações e estabelecimentos comerciais danificados, o realojamento de famílias cujas habitações foram destruídas e a REPOSIÇÃO e RECUPERAÇÃO das infraestruturas do litoral e do porto.

Era também suposto intervir na ribeiras e cursos de água de forma a adotar medidas preventivas para futuras situações de intensidade anormal de pluviosidade e de agitação marítima.

Os primeiros milhões foram gastos na Praça do Povo (que não se encaixa na Lei de Meios pois não é reconstrução de nada) e na construção de um anunciado Cais de acostagem de navios cruzeiro, que rapidamente se transformou (por necessidade justificativa da asneira dos responsáveis políticos), num molhe de proteção à Praça do Povo.

Cedo se percebeu que o projeto, se alguma vez teve um autor, rapidamente foi sendo apropriado por ‘artistas’, ‘especialistas’ e ‘curiosos’, que transformaram um projeto de relevante importância para a cidade, num ‘molho de brócolos’ feito a partir de desenhos a escalas sem detalhes e pormenor, que se exigia a uma obra fundamental para a recuperação paisagística e funcional da baía do Funchal e suas ribeiras.

É fácil adivinhar onde parou o projeto de execução, que preocupações houve na análise do existente, na desvalorização da obra de Oudinot e no entendimento do que deveria ser a obra de recuperação, consolidação e melhoramento das ribeiras.

Percebe-se que, se desvalorizam os muros de pedra projetados pelo brigadeiro e se trata a betão, sem grande preocupação estética, as ‘obras de arte’ que agora se estão a construir; se desvalorizam elementos como esta ponte que agora se preparavam para destruir e, certamente, construir uma sem graça nenhuma, tal como as que já fizeram junto à foz.

Junto à foz construiu-se um monumento à patetice que é este ‘molho de brócolos’: um amontoado de pedras, retirado da fundação de uma muralha construída ali perto, que foi descoberto durante as obras e, depois, reconstruído em cima de uma ponte. É o mundo ao contrário: os alicerces em cima de uma ponte. Surreal.

Surreal é também a proposta de manter um conjunto de ruínas junto ao largo do Pelourinho, entre as duas ribeiras, 4 metros baixo das estradas que aldeiam esse buraco. Um achado arqueológico, do qual não discuto a importância, mas que deveria ter sido, pura e simplesmente, inventariado, estudado, protegido e coberto de novo, com um arranjo urbanístico que tal Lugar exige.

Um conjunto de cidadãos chama agora a atenção para valorização de determinados elementos que constroem a ribeira, tal com a Ponte Nova e a necessidade da sua recuperação em vez da anunciada demolição. Não poderia estar mais de acordo. É pena que isto só aconteça em cima do momento da tragédia. Esta ainda está a tempo de se evitar.

Haja bom senso.

​Houve outras onde se chegou demasiado tarde. As gruas do Savoy já brilham à noite e fazem a adivinhar outro desproposito que a cidade deixou que ali nascesse.

14 de Junho de 2016
publicado in JM . Jornal da Madeira

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