Série II.018
O aborto
Cada vez que passo ao lado da obra do Savoy, lembro-me que um dia gostaria de perguntar aos principais responsáveis por aquele ’bolo de noiva’ ali estar a nascer se, na altura em que montaram o plano maquiavélico do Savoy e depois aprovaram o projeto daquele hotel, tinham noção do mamarracho que ali iria nascer, os danos colaterais que iria causar na cidade e as consequências que iria ter no turismo do Funchal.
Gostava de lhes perguntar se têm a consciência tranquila quando pensam que, para construir aquele edifício obeso e malparecido, tiveram que forjar um plano urbanístico à medida das intenções dos privados. Um plano que permitiu um projeto para o Hotel Savoy, onde, relativamente ao que estava definido no PDM desde 1996, permitiu aumentar para o dobro a área de construção, triplicar a área de implantação e aumentar mais 5 ou 6 pisos o lá estava permitido como máximo.
Será que pensavam estar assim a defender o interesse público, a cidade e o turismo ou, ao aumentar para dobro a capacidade construtiva de um terreno, por uma mera decisão política, estavam apenas a duplicar o valor de um terreno privado?
Terão pensado na altura, Miguel Albuquerque e João Rodrigues que, ao elevarem o índice médio do plano do Infante para 2,24, quando o índice máximo era 1,5, iriam obrigar a Câmara Municipal, ou seja todos nós, a pagar montantes de compensação a outros proprietários sobre área não construída que, de acordo com o PDM, nem sequer tinham direito?
Todas estas perguntas vieram-me novamente à cabeça quando, no passado dia 5 apareceu uma ‘notícia’ queriducha no DN, a propósito da obra que não passa despercebida a ninguém.
Ao que parece vai ali nascer uma “nova centralidade”… como se não houvessem mais hotéis no Funchal e na Madeira; pelos vistos há um projeto aprovado que não é aquele que está a ser feito, sendo que este tem mais áreas públicas, restando saber se é à custa da construção de menos quartos ou do aumento de mais área que não está licenciada; apregoam que estamos perante ‘uma obra de engenharia rara’, que vai ficar bonita muito em breve e que a empresa que abraçou este projecto, só o fez porque não havia mais obras na Madeira e porque ‘aquilo’ era ‘um cancro’ que existia na cidade. Ora como podia ser aquilo um cancro se não existia nada. Até tinha desaparecido o Savoy ‘kitsch‘ dos anos 60.
Estava tudo por fazer!
E podia fazer-se bem. Ou mal, como aliás está a ser feito. Um cancro é aquilo que ali está a acontecer. A “matar” os edifícios que ali existiam que agora parecem a casota do cão, ao pé do hotel com aquela envergadura.
Por isso, aquilo que se pede, no mínimo, é que, enquanto aquele cancro cresce, haja um pouco de pudor e não tentem emendar a asneira com histórias da carochinha a dizer que vão plantar palmeiras e plantas endémicas quando ocupam 100% do terreno com construção e quando o deveriam fazer em apenas 33%; desviando a atenção para a “recuperação” de um “chalé” quando se destrói a escala da cidade; ou quando se fala em mini-golfes quando, por acaso, já lá existia um no jardim a sul da rua Imperatriz D. Amélia.
Haja decência, pois defender o aborto que está à vista de todos, é dar mais nas vistas do que o próprio edifício. E por favor, não venham com aquela estória de que põe a construção civil a mexer (a obra daqui a um ano já acabou) e que vai haver mais emprego na hotelaria.
É que é possível criar emprego com investimentos inteligentes, que valorizam os lugares onde se inserem e que constituirão património a preservar pelas gerações futuras.
14 de Março de 2017
publicado in JM . Jornal da Madeira