Série II.017
Cidade em ruínas
Quando se confunde arqueologia com urbanismo o resultado é quase sempre parecido com aquilo que aconteceu no Largo do Pelourinho, no Funchal, ali mesmo entre a Foz da Ribeira de João Gomes e a de Santa Luzia.
Antes de continuar, recuemos uma dúzia de anos. A cidade histórica do Funchal relacionava-se com o Atlântico de uma forma urbana e cosmopolita, muito à maneira de uma série de cidades a beira-mar plantadas, para as quais o mar deixou de ser apenas o desembarcadouro natural dos barcos de pesca e dos botes provenientes dos navios fundeados ao largo, para oferecer uma promenade ao estilo dos finais de XIX, ou a sociedade se passeava, contemplava e convivia.
No caso do Funchal, a Avenida do Mar resulta de um projecto de início do século XX traçado pelo arquitecto Ventura Terra que foi sendo construído com as necessárias adaptações ao longo de todo esse mesmo século.
Nesse projeto a ligação das ribeiras encanadas por Oudinot é feita de forma equilibrada, sem grandes artifícios e à escala da cidade. A partir do final dos anos 70, começam a fazer-se acrescentos ao longo da linha entre o Forte de S. Tiago e a Pontinha. A doca pesca, a marina, o ‘barcos dos Beatles’, um balão fugaz, uma pista de skate e um hotel.
A linha de costa foi assim sendo alterada, sem um projeto comum que conferisse a unidade e coerência que durante uns anos existiu nessa linha de ligação entre o a cidade e o mar. Apesar de tudo, mantinha-se a possibilidade de recuperar o desenho e o carácter dessa parte da cidade. Aproveitando para melhorar, claro, mas mantendo o espírito do lugar.
Porém, aconteceu o 20 de Fevereiro. A enxurrada de sedimentos que entupiram as ribeiras na sua foz, deu origem a uma resolução do Governo Regional para, com o dinheiro que a República disponibilizou através de uma coisa a que chamaram ‘Lei de Meios’, iniciar um projeto de urgência, sem ponderação, debates, concursos e com a pressa de estoirar o dinheiro fácil que chegava de Lisboa, como é o caso do Cais de navios cruzeiro que nem sequer estava no âmbito para o qual foi criado o pacote financeiro de apoio.
Hoje, passados 7 anos sobre essa desgraça e as decisões catastróficas de avançar com as obras que vieram a modificar a face Atlântica do Funchal, não se percebe a urgência da maior parte das obras que foram e ainda estão a ser feitas, não se percebe a lógica do projeto urbano que transfigurou a Avenida do Mar.
Curiosamente, também não se sabe quem são os autores dos projetos de desenho urbano e paisagismo que servem de base a estas obras megalómanas que só parecem existir para continuar a alimentar as centrais de betão que nasceram para construir a Singapura do Atlântico. Aliás, Desenho e Projeto, para além de cálculos de engenharia, é coisa que parece não ter assistido a estas obras que revelam o desentendimento do Lugar de intervenção, da cidade, da História do Funchal.
Onde estava a urgência para fazer obras de tal monta? Houve urgência para construir um cais que não cumpre a sua função, houve urgência para fazer uma praia artificial que afinal não é praia, houve urgência para substituir muros de pedra centenários das ribeiras por muros de betão que não sabemos quanto vão durar, houve urgência para pôr a ‘máquina’ a funcionar depressa.
Mas não houve tempo para fazer as intervenções óbvias nos sítios de risco das zonas altas da cidade, não houve tempo para fazer um projeto com pés e cabeça e colocá-lo à discussão pública, de forma clara e transparente, evitando assim movimentos de cidadãos que, legitimamente, depois de conhecer, já em obra, as intervenções desastrosas com demolições de pontes e recobrimento dos muros das ribeiras com betão, reagiriam a tal atentado.
Mas há um ex-libris destas obras abrutalhadas que mutilaram de forma indelével a face Atlântica do Funchal. A propósito do ‘achamento’ de ruínas que jaziam há décadas debaixo do Largo do Pelourinho foram chamados os arqueólogos.
E muito bem.
Era importante registar, inventariar e caracterizar os elementos arqueológicos encontrados. Se as ruínas do resto da muralha e do forte que aí um dia existiram, tivessem interesse suficiente para as manter à mostra de todos para, através desses restos, se compreender um momento da história da cidade, então seria de todo o interesse aí criar um espaço arqueológico para poder ser estudado e visitado.
Mas não é o caso.
Não sei exactamente de quem é a responsabilidade de se ter mantido até aos dias de hoje o tal ‘achamento’ arqueológico que aos poucos se vem transformando numa lixeira a céu aberto. Sei apenas que, o que ali está é um disparate urbanístico que não dignifica esta cidade. Percebe-se que não houve um desenho urbano cuidado que tratasse a Praça da Autonomia, a sua ligação ao Largo do Pelourinho e a ligação deste, ao casario que o envolve.
Parece por isso lógico, tendo em consideração a qualidade das ruínas em causa, que, após o respectivo estudo, aquelas deveriam ser protegidas e devidamente recobertas, repondo, com as devidas adaptações, a praça urbana que aí deveria ter continuado a existir.
Também me parece óbvio que, numa intervenção a fazer urgentemente, deve ser retirado o anedótico amontoado de pedras que evoca a muralha que ali existiu, colocada agora sobre uma ponte (!?!?). Sim, uma muralha sobre uma ponte.
Um projecto urbano por favor. É urgente.
16 de Fevereiro de 2017
publicado in JM . Jornal da Madeira